Ethereal Knight
Seja um bom soldado, morra onde você caiu.
- Jan 10, 2022
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massa! é como dizem: nunca pergunte a uma mulher sua idade, a um homem seu salário, e ao Emil Cioran por que ele morreu de causas naturais aos 84 anos de idade huahuahuaEu não sei como eu não conhecia Emil Cioran ou seus trabalhos, mas desde que li essa citação estou fascinada com os argumentos dele sobre o suicídio. Acabei de ler um artigo que é uma revisão bibliográfica das obras dele focando na questão do suicídio, apesar de ainda estar processando e pensando sobre tudo que eu li, consigo adiantar que eu estou admirada. Muita obrigada por ter citado ele, com certeza vou dedicar algumas horas lendo os textos originais (tenho uma fixação pouco saudável em ler textos acadêmicos e livros com diferentes visões sobre suicídio e comportamento suicida).
tem um outro que toca brevemente na questão do suicídio sob o ponto de vista da ética, o Julio Cabrera, no livro Projeto de Ética Negativa. o Julio deu aula bastante tempo em Brasília, então talvez alguém aqui conheça ele. é um ótimo texto pra reflexão. o que está escrito daqui pra baixo foi escrito por Julio Cabrera:
SUICÍDIO
A morte está em todas as suas alternativas. Por conseguinte, a "opção pelo suicídio" deve ser, em todo caso, a opção por uma maneira de morrer, e não "pela morte", Quando alguém escolhe suicidar-se pode colocar a sua decisão nos planos de uma reflexão racional do seguinte tipo: trata-se de uma morte menos angustiante, desde que posso controlá-la, datá-la, prevê-la, tirá-la da indeterminação da "morte natural"; menos frustrante do ponto de vista das minhas possibilidades e projetos existenciais, desde que posso projetá-la dentro do meu projeto, e não recebê-la como sua ruptura brutal; menos traumatizante para os que me amam e se preocupam por mim ou necessitam de mim, desde que posso, gradativamente, habituá-los à idéia de perder-me através de falas, trocas de idéias etc. etc. Esta linha de pensamento leva a uma humanização da morte, tirando-a do seu invólucro brutalmente natural e colocando-a claramente no terreno moral onde os homens projetam, conversam, se amam, têm saudades uns dos outros, e assim por diante. Desafio qualquer moralista a provar que esta linha de pensamento é "irracional", "doentia" ou "absurda".
Devemos ter forte e enérgica consciência de que nem todos os homens possuem a mesma sensibilidade existencial, a mesma sexualidade, a mesma maneira de elaborar seus medos, a mesma atitude perante sua morte inevitável. Muitos homens se angustiam mais quando a sua morte possui data certa, mas muitos homens se angustiam enormemente quando a morte é algo absolutamente indeterminado. Por conseguinte, a idéia do suicídio pode ser, dependendo das idiossincrasias, profundamente perturbadora ou profundamente confortadora. A estrutura social não pode pressupor algo como uma atitude padronizada perante esses fatos fundamentais, sob pena de destruir a metade das pessoas submetidas a ela. Não pode, por isso, haver uma aceitação ou uma condenação universais e radicais do suicídio. Muito menos deve-se colocar "a racionalidade" do lado de uma dessas atitudes, deixando a outra nas trevas do irracional, a Ética social deve ser extremamente cuidadosa com essas questões. Em certos tipos de homens, o suicídio pode constituir-se numa espécie de "idéia regulativa", em sentido kantiano, no sentido de um suicídio ideal que lhe permite continuar vivendo indefinidamente, um suicídio puramente regulativo dos ritmos da existência, mas que não teria uma realização histórica real, como qualquer outra idéia regulativa kantiana (o contrato social, ou a constituição republicana).
Algo como um imperativo de "Dever viver" não poderia ser eticamente formulado, apenas juridicamente formulado, como podemos encontrá-lo, por exemplo, na filosofia de Rousseau. Nesse contexto, a conservação da vida é uma questão civil, fortemente ligada à constituição do corpo político. Tudo o que se torna ininteligível quando dito acerca da "vida natural", torna-se: compreensível quando se aplica à "vida civil", ou seja à nossa vida enquanto membros de um certo corpo político. Só a "vida civil" pode ser protegida pelas instituições, e, em troca dessa proteção, o cidadão assume o dever jurídico de contribuir à proteção da vida civil como um todo, e da sua própria vida civil, dado que essa "vida civil" não lhe pertence integralmente a si mesmo, mas ao corpo político, em virtude do pacto social. A condenação do suicídio adquire, dentro desse contexto sócio-jurídico, todo o sentido que não poderia, sob hipótese alguma, ter no plano estritamente moral, no qual as nossas reflexões se desenrolavam anteriormente.
A pessoa que não toma cuidado de si mesma, entre elas o suicida, acarreta com a sua negligência inconvenientes sociais e econômicos para o Estado. Igualmente, em caso de guerra, o cidadão poderá ser obrigado a entregar sua vida civil ao corpo político, se este o exigir. Nesse contexto crítico, o suicídio não é, em absoluto, um "mal moral", ou um "pecado", mas, estritamente, um crime, (Cf. Contrato Social). A "vida civil" não é uma dádiva da natureza, mas um dom condicional do Estado. (Se um homem chega aos oitenta anos, deve isso à proteção do Estado, mas este poderia ter-lhe exigido morrer pelo Estado aos dezoito. A morte de um soldado jamais é prematura.)
Pareceria que o suicídio pode ser radicalmente condenado do ponto de vista jurídico, por um lado, ou de um ponto de vista religioso, por outro, porém jamais de um ponto de vista estritamente ético. O suicídio pode ser radicalmente condenado em virtude de certas convenções ou em virtude de certas crenças, mas não em virtude de argumentos, mente acerca do suicídio, como devendo fazer a sua apologia, o que é, certamente, absurdo. Mas esse absurdo responde ao absurdo contrário, à apologia panfletária da vida, acrítica e sem condições, que rege a nossa sociedade. Um discurso sobre o negativo não poderá assumir-se, simplesmente, como a exposição de uma opção, enquanto o discurso afirmativo habitual não se assuma igualmente como tal, em vez de tentar colocar a "natureza" do seu lado.
O panfleto em favor do suicídio, quando o afirmativo for recolocado como opção, deverá perecer como panfleto e poderá brilhar com seu próprio brilho.
Cada mundo tem seus próprios suicidas. Os nossos são os que assumem: o não-ser do mundo. Que o suicida tenha, mais ou menos intimamente, anseios de outros mundos, é irrelevante para o que o suicida significa para o mundo do qual ele é um suicida. Para todos os efeitos, o suicida é um viajeiro kafkiano.
O suicídio não deve ser ligado necessariamente a um "fracasso": continuar vivo pode comportar o maior envelhecimento, a negação de todo heroísmo, e o fato de um homem suicidar-se não prova, em absoluto, que "seu projeto de vida era errado" etc. Uma morte pode ser uma consumação, um profundo triunfo, uma plenitude, uma iluminação, um estalo interior, uma irreprimível alegria.
O suicídio não é uma filosofia. Não há nada que ele exija de discípulos. O suicida é o sentido da vida, ele não precisa elaborá-lo ou pensá-lo. Ele é isso que os outros, os não-suicidas, elaboram, ou são obrigados a elaborar, devido a sua opção pelo viver a morte. Porém, para ser o sentido, ele precisa desaparecer, secar a fonte da ilusão. O suicida é "o problema da vida". É impossível ser o sentido na vida. Seja o que for o que eu diga, é sempre falso, enquanto precise ficar aqui para dizê-lo.
Não deveria transformar-se o suicídio num "acidente", paralelo ao "acidente" de nascer. Também para sair da vida isso será necessário, mesmo os últimos instantes do suicida estão ainda cheios da culpa de estar vivo. Por isso, se o suicida quebra alguma coisa ao sair, deveríamos lembrar que se trata da última vez e que, de alguma maneira firme, ele nos prometeu não fazê-lo de novo.
A destrutividade do suicídio é co-construída pelos sobreviventes, como parte do seu projeto de sobrevivência. O suicida fica repetitivamente convertido numa espécie de ofensa perpétua e inextirpável, numa espécie de ganhador invencível, e é odiado por isso, por não expor-se, por não continuar sendo um alvo imóvel, atingível. É exigido de mim que fique aqui, morrendo aos poucos, com muito sofrimento. Senão, não "serei perdoado".
Qualquer projeto de sobrevivência afasta a possibilidade do suicídio e opta pela selvageria da vida. Nenhuma atitude humana será agora pura, mas sempre comprometida com a sobrevivência: os que se opõem deverão morrer as mil mortes cotidianas. Não posso dar-me ao luxo da verdade ou da justiça, sendo que as minhas idéias descansam num corpo que decidiu continuar.